segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O ir e vir do além.

Acendeu uma vela numa noite qualquer, ou quase qualquer, em posição de lótus e começou a meditar.
Ouvia a música e pensava que em 24 horas completaria 38 anos de vida.
Inspirou, expirou. Diversas vezes. Visualizou seu corpo ficando verde. Cada vez mais verde. Era assim que o livro mandava.
E, em poucos instantes, bem na sua frente, surgiu um grande portal de ferro torcido, entrelaçado, detalhado, com dois portões pesados numa mistura de rococó com inferno de Dante.
Em meio aos ferros, trepadeiras surgiam, subiam e desciam frente ao seus olhos, tornando tudo escuro e muito denso.
Aproximou-se. Abriu. Primeiro um lado, depois o outro. Fumaça saiu de dentro. Como um passe de mágica ou uma experiência animada. Ou um gelo seco falso de um palco. Foi-se e dali surgiu: um grande arco-íris em forma de ponte. Uma ponte infinita com inúmeros sobes e desces. Fazia curvas, era leve e por lá divertiu-se. Um grande escorregador de diversas cores. Aventurou-se. Livre. Translúcido.
Com o tempo, a velocidade aumentava. Não havia medo, só deslumbramento. Encantada ficou.
Ao lado, no meio, em cima e  embaixo, surgiam danças, giros, movimentos seus, passados e futuros. Papéis, textos, máquinas de escrever, gente dando textos, falas, cenários, luzes, palco. Tinta, muita tinta, cores. Pincéis. Artes em um lento furacão, mas de uma beleza indescritível. Tudo ia, bailava sobre esse céu de arco-íris, quando de repente, ao longe, ela avistou uma pequena caixa. Demorou para definir que caixa era e como era. Ao fim de várias mutações ela se fixou em madeira, pequena e não muito escura. Conseguiria abrir? O que teria dentro? Esperou. Tentava liberar a mente do auto controle para que o inconsciente pudesse agir. Brigou, relutou, parou. Só abriria se relaxasse quanto ao conteúdo. Esperou mais um pouco e pum! apareceu uma chave. Aproximou-se da caixa e abriu.
De dentro daquela pequena caixinha começaram a surgir notas musicais grandes, pretas, em forma e volume. Saíam com som, flutuantes e passavam aos braços dela. Ganhando em quantidade e, do fundo da sua garganta verde, começaram a estimular um canto lindíssimo. Era a sua voz. Era o seu próprio canto que andava guardado há muito tempo no Além. Agora, estava livre e podia se expressar, cantar, vivenciar. As notas a conduziram por esse céu, pelo espaço e, voando, ela foi levada de volta para a entrada do portal de ferro. O portal se fechou e ela se manteve fora, agora preenchida com sua música interior.
Silenciou. Estava já deslumbrada com tanta descoberta e amor. Seu coração estava cheio e sua mente ainda tentava assimilar tamanha informação e emoção. Ainda enxugava as lágrima que escorreram junto com a descoberta do canto. Respirou. Expirou. Silenciou novamente.
Era preciso continuar, ela pensava. Era preciso agora adentrar seu portal interior. Olhar pra dentro de si. E, por mais confusa que estivesse, conduziu sua meditação para seu corpo, seu peito, seu coração. Assim como a música havia despertado uma sensação de abertura da sua espiritualidade, o olhar para dentro acendeu uma chama. Um fogo, uma fogueira, começou a queimar entre seus seios, no meio do peito e no plexo solar. Vermelha, laranja quente. Sentiu-se aquecida. Ela deveria abrir para a chama. Para a criatividade, para sua própria intuição. Agora estava tudo mais claro. Havia chama em seu peito e ela tinha visto e vivenciado com seu próprio corpo. Era isso que precisava liberar.
Assim,  cheia de música e fogo, foi expirando todo seu verde do corpo e materializando seu corpo, suas pernas, seus cabelos e o local onde estava sentada. Aos poucos, abriu os olhos, bem devagar. De lá, de sua pequena almofada no chão, avistou seu gato em cima da cama. Ele olhou para ela. E sorriu.