segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O interfone

E o homem tocou a campainha e disse que queria dinheiro para passagem. Passagem para onde meu filho?, a mulher respondeu, pensando que ela mesma queria partir para algum lugar onde não existisse angústica no peito e onde pudesse carregar sempre um sorriso na cara. Para minha casa, senhora, é que moro longe. Moro longe, moro longe, moro longe....as palavras ecoaram dentro da pele e subiram pelo peito até a cabeça. Eu também moro longe, pensou, bem longe de onde estou. Desligou o interfone e nada mais disse.
O homem, faminto e sem dentes, insistiu na campainha. Ô dona, vê com a sua patroa se ela pode me pagar a passagem. Era ela a patroa de si mesma e sobre isso ela não tinha dúvidas, então, de certo modo, ficou um pouco satisfeita. Espera que vou ver!, respondeu segundos depois. Andou pela casa vazia, sentou na poltrona de leitura com um copo d`água e deixou os minutos passarem. O homem, aflito já, esperava lá fora no frio. Ela bebeu outro copo d`água, e mais outro, e mais outro. E, quando já estava satisfeita de líquidos e com a cabeça mais fria, foi ao interfone e disse: Moço, aqui não temos passagens para nenhum lugar. Estamos todos mortos. E desligou da tomada.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O voo de flecha.

Ela sonhou com arco e flecha.
Um campo largo, cheiro de flor.
Infinito.
Não era arqueiro, não era arco, não era alvo.
Era a flecha.
Ela mesma, deitada, pendurada, na horizontal.
De um movimento, lançada no horizonte,
sobreava os campos verdes
E voava, retilínea, veloz, plena.
Em direção àquilo que não se vê a olhos nus.
Mas que se sente batendo no meio do peito...

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Saudade.

Sinto saudade do seu olhar quando me olhava em desejos.
Eram ondas que me levavam
e me deixavam
como espumas salgadas.
 
Sinto saudade do seu corpo quando não tinha forma,
mas se formava
a partir do encontro com o meu.
 
Sinto saudade da risada descarada,
daquilo que se dava,
mesmo sem fazer nada.
 
Sinto saudade da saudade,
de sentir saudade,
de dar saudade e
de ainda acreditar que ela existe.
 
Sinto saudade.
 
 
 
 

terça-feira, 27 de setembro de 2016

A loucura da lucidez.

Dizem...
ser mais fácil caminhar em loucuras
do que numa certa lucidez.
Mas como todo louco, lúcido,
talvez esteja eu vivendo
a minha maior clareza
dessa existência.
Num fio
que separa o mar do rio,
a vida da morte,
o amor da desilusão,
o justo do incerto,
o reto do torto,
o medo da coragem,
o oculto do concreto,
o desejo do que pode dar certo.

Esse fio pode estar por um fio.
Ou pode amarrar tudo e me levar prum rio.
E eu? A ver navios.
Assobios.
Arrepios.
E o eterno vazio.

Louca.
E cada vez mais lúcida.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Pegadas para a casa de dentro.


O cheiro de horta molhada ela carregava nas narinas quando passava pelo esgoto.
Respirava raso o fundo que ainda lembrava do sabor da terra.
Pisava firme no asfalto quente e quebrado vendo seus dedos sumirem entre os grãos de areia e pedalava ao vento vendo as caras, as cenas e tudo aquilo que já existira com ela mas não podia mais.
Quando olhava para o céu buscava estrelas cadentes em meio às nuvens negras e dizia para si mesmo que elas tinham ido se esconder, pois eram tímidas demais para se exibirem na escuridão.
Pelas ruas, fazia dos bueiros e das faixas de pedestres pegadas de antas, de onças e de cachorros do mato. Era o seu jeito de encontrar o caminho de casa.
De voltar para aquela casa que existia mais.
Mais dentro do que fora.
Mais dela do que fora.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Vazios.

Tem vazio que corre e logo vai embora.
Tem vazio que dança e ajuda no balanço.
Tem vazio de palco que se deixa levar com as palavras.
Tem vazio de noite que se afoga na cachaça.
Tem vazio que paralisa e só vai embora no dia seguinte.
Tem vazio que aparece do nada e depois vai embora.
Tem vazio que tem fome.
Tem vazio que grita pelas janelas.
Tem vazio que cala fundo.
Tem vazio que chora, chora, chora.
Tem vazio que se esconde num sorriso, num abraço.
Mas que se revela num amasso.
Tem vazio que aparece na cama. E grita. E goza.
Tem vazio que não espera o outro ir embora.
Tem vazio que pede para sair fora.
Tem vazio que sente falta.
Tem vazio que nem nota a falta.
Tem vazio que se enche de trabalho.
Tem vazio que dá trabalho.
Tem vazio que dá rasteira e beira a loucura.
Tem vazio que vira santo e medita.
Tem vazio que toma chá,
que fuma, que rola.
Tem vazio que ri, que curte e compartilha.
E tem vazio, vazio.
Que esvazia.
Que deixa tudo mais vazio.
Nem resto, nem tampa, nem rio.
Como vaso vazio.
Vazio.
Vazio.
Vazio...
( ).

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Chá Quente.

Um bom chá quente
serve para algumas coisas:
Para fazer da alma pesada,
leve,
Para tocar o espírito
e meditar bem breve
E para queimar a língua
e lembrar
que, apesar da alma e do espírito,
também somos corpo
que escorrega e erra.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Bolos e bolos.



A gente andava de olhos atentos e atados entre os fermentos.
Havia uma certa falsa segurança neles. 
Como se o crescimento do bolo fosse garantido por lá.
Era só colocar, em colheres rasas e em doses medidas, que tudo estava certo de seguir como deve ser.

Mas havia dias em que a falta deles na despensa acontecia. 
Dias em que o fermento estava vencido e que, por distração ou vontade, a gente se destilava um ao outro na vontade de colocar algo diferente naquele bolo. De vê-lo crescer, mais do que o normal, mesmo sabendo que depois ele poderia murchar ou até mesmo virar uma grande bola de pedra. De pensar na calda mais que o bolo. De se deliciar nas caldas.
Nesses dias, a cozinha se punha em cores diferentes e a assadeira esquentava mais que o normal.
Havia pó por todo lado e os ovos estouravam ao escapar das mãos. Era uma grande algazarra da culinária. Era uma grande festa de degustação. Não importavam as formas, os tamanhos nem os bolos.
Nos lambuzávamos.
O que estava em jogo era o assar em si. O ato de alquimia.
E esses dias são os que ficavam na memória. Os bolos queimados e desperdiçados.

Já os bolos lindos e formosos, feitos com zelo e fermento, ficavam na estante, de enfeite, esquecidos pelo tempo. Perdiam o sabor. Eram seguros. Fermentados. Enfeitados demais.



domingo, 10 de julho de 2016

Mulher-serpente

 
Era a pele que descascava
a medida que as mãos,
tão e só suas,
deslizavam pelo corpo dela.

Meio cobra, meio mulher
Os ossos eram agora elásticos,
e se esticavam
e dobravam
e se equilibravam
na curva
do imprevisível.

Era ali que ela se encontrava.
As retas estruturadas no espaço
entre as rótulas e os dedos dos pés
já não faziam mais sentido.

Ela queria espaço. Flexibilidade.

Sua cabeça
que antes pesava
agora preparava o bote
para agarrar a vida
para não deixar passar
aquilo que era despercebido.
De lado.

Uma cabeça de serpente.
Agora de frente.
Que ao som da flauta cria seu próprio ballet.
Movimentos radiais,
vibrações circulares,
orgasmáticas
e contínuas.

Agora ereta.
E completa
em sua insuficiência
para as mutações do tempo.
Tanto tempo. Pouco tempo.
Todo o tempo.

Inacabada. Frágil.
Prestes a se descascar novamente.
A cada instante.

E, por isso,
tão potente.
Tão feminina.
Tão mulher.
Tão serpente.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Retalhos largados.

Mais sabem os pássaros que cantam
e os gatos que lambem
do que o Homem que diz
que carrega em si
toda a ciência de estar vivo.

O Homem
do alto da sua sabedoria humana
para tentar salvar aquilo que se chama d`alma
inventou a culpa e o medo
e fez, assim, da sua Alma
um retalho de pano preto.

Um pano velho, largado,
para apagar ditas sujeiras
que esconde antes
debaixo da mesa
debaixo da cama
debaixo da sua intuição
e das suas paixões.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Piada de Telegram.

E ele vem rápido.
Chegou, passou.
De novos à grisalhos.
O corpo esguio.
De olhar profundo
aos óculos de vista fraca.
De conquistar o mundo
ao que o mundo me deu.

Ele, o tempo, tão efêmero.
Traiçoeiro dos desejos de se entender as coisas.
De nomeá-las.
Ele que me ensina a aceitá-lo
sem opção de troca.

Tempo, que assenta as dores,
os temores
e dilata os amores.

Que me faz entender
que a vida
que ele
Passa
Igual
Passo
uma piada no Telegram.



sexta-feira, 6 de maio de 2016

As agulhas e a lã


A gente podia se enroscar uma hora dessas
e fazer
daquilo que não foi
um novelo emaranhado
multicor
pra ver se no encontro
de duas agulhas
sai alguma coisa
que me esquente
preenche
nesse tempo frio que chega.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

terça-feira, 3 de maio de 2016

Coluna ereta, mente aberta.


Tinha um fio de sangue que ainda corria pela sua coluna
Ereta, discreta, reta.
Fez-se o movimento.
A curva.
Não havia elasticidade naquele corpo.
Rompeu-se.
O sangue jorrou.
Explodiu-se em milhares de vértebras.
Em um grande lago rubro.
Quase negro.
E a longa coluna converteu-se em mar.
Em ondas vertebrais.
Capazes de retas, curvas e torções.
Capaz de invertidas.
Além mar.

domingo, 1 de maio de 2016

A imaginação sentimental.

Pessoa me disse Isto, numa noite fria:

"Dizem que finjo ou minto
 Tudo que escrevo. Não.
 Eu simplesmente sinto
 Com a imaginação.
 Não uso o coração."

Ouvi, e imaginei.
E o coração disparou.
Sentimental.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Parceiro de dança.

 

Dizem que quem dança seus males espanta.
Me espanta.
Os males vivem dentro de nós.
E são ótimos parceiros de dança.
E contra-dança.

E que mal tem isso?

terça-feira, 26 de abril de 2016

fio de rio.

Existem dois tipos de lágrimas.
A de dor,
E a de amor.

Elas se revezam na pele.
Pintam as carcaças.

Escorrem.
Secam.
Mancham.

Seguem juntas, às vezes.
Formam rios, lagos, oceanos.

Gotejam toda forma que não se faz rancor.


domingo, 24 de abril de 2016

Um possivel assassinato.

Quando a noite caía ela ouvia os uivos dos lobos
E o piar das corujas dizendo: uuuu-uuuu-uuuu.
Ela tinha sustos de barulhos de móveis
E do piso de madeira larga que forrava a casa.
Era impossível apagar a luz.
Precisava dela para ter a certeza de que o medo vivia dentro dela.
No escuro, ele saía por aí, passeando pelos corredores
E, quem sabe, até poderia encontrá-la.
E, se se encontrassem, era morte na certa.
Ou dela, de tanto medo.
Ou dele, de tanta lucidez.

E, então, seria uma lástima.
Pois ela não vivia sem ele
e nem ele sem ela.

um grito.

Um grito, quando detonado, malvado, estilhaçado,
é capaz de criar um quadro
de horror,
mudo,
escancarado.

Mais caro e descarado que o tal quadro do Munch.

Vale o preço.
Vale a dor.
!
?
Mas não vale o amor.

o amor e o som das palavras.

Escreveu tanto que se perdeu nas palavras.
E emudeceu-se.
À espera de se achar.
Mas o seu silêncio tornava o labirinto ainda mais escuro.
E o som das palavras dentro de si ainda mais alto.
Foi, então, que, um dia, decidiu falar.
Falou uma, falou duas, falou três.
Frases.
E congelou.
Porque se deu conta de que teria que falar dias, horas, anos, infinitamente.
Na busca de compensar o tempo calada.
E que viveria na eterna frustração de não conseguir colocar em palavras aquele amor que ainda sentia.
Assim, optou pelo tormendo calado
ao vazio frustrado.
E emudeceu-se.


o trem vem vindo.


Ela tinha a coragem de se jogar entre os trilhos.
Mas tinha medo de que a vissem pulando.
Não era vaidade.
Era que a dor dentro dela era tão medonha
que não merecia plateia.