quinta-feira, 17 de outubro de 2019

sob meu ponto de vida.

Acordo hoje antes da hora, mas achando que já falta pouco tempo pra tudo o que eu quero fazer.
Acordo minha filha que, cansada por ter dormido pouco, está mal-humorada e já desperta a minha culpa de mais uma noite não ter sido a mãe perfeita que o mundo espera que a gente seja, e que às vezes a gente acha que tem que ser mesmo (e isso é foda), por ter deixado ela dormir após às 23hs da noite anterior porque brincávamos de inventar poesia e aquilo era muito excitante pra nós pra que terminasse cedo.
O café é pouco e tem aveia e chá. Olho para as xícaras na mesa que gritam para mim o fato de eu ter esquecido o mercado no dia anterior.
O gato mia. Tem dor e enquanto eu tento lembrar da lição, da roupa da aula de educação física e do lanche da minha filha, que insiste em sair de casa vestida de pijama, as 5 mensagens no whatsapp não respondidas pulam dentro de mim. Será que o patrocinador recebeu meu email? Qual dos projetos hoje vou me dedicar um pouco? Não estou conseguindo participar deste grupo, será que ainda devo fazer parte? Será que o cara que eu saí ontem sente saudade hoje?
Carro. Trânsito. O carro continua com defeito no sistema elétrico. Ah, e o chuveiro de casa também. No banco do passageiro, a lâmpada queimada do teto da área de serviço me olha há uma semana e ainda não encontrei tempo pra trocá-la na loja. Pelo menos achei a nota fiscal, o que me alivia um pouco. Estou ficando menos caótica e o pensamento de que talvez até mereça uma lâmpada nova exatamente por ter pela primeira vez guardado uma nota fiscal em meio a tantos papéis amontoados no armário do corredor flutua pela minha mente.
O gato no veterinário tem o pelo raspado na barriga pra um ultrassom enquanto a sua filha aos berros grita que não quer ver. E chora, alto. Entre acalmar a filha e segurar o gato, tento olhar com cara centrada e controlada para veterinária que olha para tela com cara de indiferença. Quanto será que vai custar essa consulta? Será que meu gato tem algo grave? Quando comecei a amar esse ser vivo como se fosse um filho que agora minha alma parece estar despedaçada só de ouvir um possível diagnóstico trágico?
Deixo minha filha na escola, e a abraço pensando em como sou grata por ela ter me ensinado a gostar mais dos animais, e logo passo na Cobasi mais próxima. E, por um décimo de segundo, não compro um coelho. Em que momento eu me perdi neste começo de dia entre comprar o remédio do meu gato e levar pra casa um coelho numa gaiola? Não, brigada, não vou levá-lo hoje. Quem sabe semana que vem, respondo pro vendedor ao mesmo tempo que percebo que no meu carrinho peguei ração de cachorro e não gato e faço a troca, disfarçadamente, com a esperança de que ninguém do corredor tenha notado a minha confusão mental.
Mas ela só aumenta. Minutos depois, entro no velório de um grande mestre e me deparo com todo meu passado teatral em forma de gente. Aqueles corpos se abraçando e chorando, às vezes rindo, e me trazendo à consciência a imagem da Arte com a espingarda apontada para a minha cabeça gritando: é hora de criar, é hora de se doar, é hora de compartilhar. Mais!!! O que foi feito até agora não é suficiente! Agradeço aos que passaram pela minha vida até agora ao mesmo tempo que reflito que o afeto é a única coisa que fica entre um café e outro.
O dia segue e, entre uma reunião e outra, lembro que as minhas unhas continuam quebradas e fico dividida entre marcar uma manicure, comprar um presente de aniversário para minha melhor amiga e ligar para minha avó que não vejo há meses. Tomo mais 2 xícaras de café e percebo que no dia já foram 4. E noto como, pela milésima vez, já perdi o controle dos meus vícios. E como é difícil controlar nossos vícios. E que como é bom ter vícios para pelo menos refletir sobre eles. Antes vícios do que deitada naquele caixão. Começo a rir de mim mesma, descontroladamente. Dentro do metrô as pessoas passam apressadas e nem percebem que talvez para alguma delas este seja seu último dia de vida. E que alguma delas poderia até ser eu mesma.
Sigo para a aula e o tempo esfria. E lembro da minha jaqueta de couro roubada na última festa que fui. E lembro como essa cidade é cruel com as pessoas de bom coração. E que mesmo ela sendo cruel eu sou teimosa e vou continuar deixando a porta da minha casa destrancada.
Um professor me dá um presente. Um livro. E agradeço mais uma vez pelos mestres que sempre me atravessaram e continuam atravessando. E penso na sincronicidade da vida. De como o maestro da minha tá gritando alto para continuar a tocar. 
Meu gato continua vomitando e espalhando merda por todo meu apartamento. Chego em casa tarde, limpo o chão e toda a filosofia do meu dia se resume a uma coisa: desinfetante. Abro um logan, lembro dos amigos e brindo a essa vida que a gente constrói no dia-a-dia enquanto o País segue sendo liderado por uma gente que não acredita mais em natureza, em filosofia e muito menos em Arte. E eu continuo escrevendo. Poesia. Para sobreviver.