quarta-feira, 3 de maio de 2017

O ego e as fantasias virtuais.

Acordou com café quente para tentar organizar os pensamentos, mas o café só queimou a língua, que teimava em se mexer ansiosa pela palavra dita. Abriu a janela e pensou que poderia ter acordado mais cedo para ver os pássaros cantarem, mas que a vida andava tão dura que ela queria mais é que eles se fossem. Escovou os dentes com tanta força e a gengiva sangrava. Como sangrava também a vontade de acessar as redes sociais que ela havia prometido não mais socializar. Não queria mais saber por onde as pessoas andavam e nem quem elas queriam mostrar. Não queria mais gastar tempo da sua vida pensando em quantos e quais views ela viria a ter no próximo dia. Ela não pensava. Mas pensava. Era algo que invadia sua mente e causava certa ansiedade no meio do trânsito quando ela já havia prometido não mais acessar o pequeno quadrado sedutor. Ela não brincava no trânsito. Pois os carros não brincavam com ela. Eram cruéis. Assassinos. E ela já havia escapado de um ao ponto de saber que a vida vale mais a pena que curtir fotos de pessoas que nem lembravam mais quem ela era ou o que ela sentia. Ou o que sentiam por elas. Esse era o ponto que a incomodava. E muito. Ao clique de um like ou de um não visto, parecia que a realidade toda na sua cabeça se modificava. Ela tinha talento para inventar histórias não vividas e muitas vezes se perdia nelas. Esse era o exercício. Parar com as vidas criadas e voltar para a realidade cruel. Sim, estava cruel. E talvez por isso ela andava se perdendo no mundo virtual. Por ali as horas fugiam do seu controle porque cansada já estava de ter controle de tudo. Lia tudo que aparecia pela frente, de receita de bolo orgânico aos maus tratos das crianças em países que nem sabia que existia. Curtia tudo quanto estava de bom humor e os ignorava quando estava carente. Era uma forma de guardar amor para si mesma. Dar like para si mesma. Era assim a forma que tinha encontrado de viver no mundo falsificado dos instantes. O silêncio e a ausência virtual era um jeito de fazer carinho no seu próprio ego. Por mais contraditório que isso possa ser. Mas o fato é que ela andava com o amor bem em baixa e os cliques pulavam das suas mãos quase incontrolavelmente. Ela, ali, podia se expôr, inventar, criar e até modificar a realidade. Era boa nisso. Ela mudava sua realidade a fim de controlar a sua própria fantasia. A sua própria fuga tinha atalhos tortos que a levavam para cada vez mais longe de si. Era difícil viver assim. Não queria mais. Sentia falta da risada solta dita sem pretensão de ser engraçada e das conversas que surgiam da troca profunda de olhares. Sentia falta das palavras ouvidas que nunca chegou a ouvir. Sentia falta. Falta de uma realidade mais suave. Mais reta. Mais honesta. Mas ao sair de casa percebeu que isso era quase a mesma ilusão de acreditar nos mundos virtuais. E que não tinha saída. Então, entrou no carro, colocou a chave no contato e deixou o celular ligado no banco do passageiro para quem sabe um dia deixar que tudo isso passe. Ou até que a vida passe.


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